miragens circulares do miraculoso quadrado

 

Sofia Soft







caros leitores, a narrativa a seguir kontëm sequëncias de luzes piscantes que sempre causam enjoo, enxaqueca & vömito, tambëm induzindo konvulsöes em decorrëncia de uma hipersensibilidade a existenciais vertigens.







> X pertence a X se e somente se X não pertencer a X.
{ paradoxo de Russell }


>a frase abaixo é falsa.
>a frase acima é verdadeira.
{ paradoxo do mentiroso }


>todos nós somos marionetes, Laurie, a diferença é que eu enxergo os fios.
{ Doutor Manhattan, em Watchmen }


se o cérebro humano fosse tão simples que pudéssemos entendê-lo, seríamos tão simples que não o entenderíamos.
{ Emerson M. Pugh }









¿quem consegue dizer com absoluta certeza em que ponto uma história começa?
ninguém.
porque será sempre possível recuar um pouco, e mais um pouco, e mais um pouco…
sempre em busca do sentido completo do que realmente aconteceu.
sempre em busca do que convencionamos chamar de Verdade.
¿quem consegue dizer com absoluta certeza em que ponto uma história termina?
ninguém.
porque será sempre possível avançar um pouco, e mais um pouco, e mais um pouco…
sempre em busca do sentido completo do que realmente aconteceu.
sempre em busca do que convencionamos chamar de Verdade.



eu digo & repito:
nosso pequeno herói é um menino negro de oito anos de idade.
ou dez anos.
ou doze anos.
um bonito & saudável menino negro de oito anos de idade {ou dez anos, ou doze anos}, chamado Fortaleza.
ou Abracadabra.
ou Rocinante.
ou Algazarra.
aliás, vocês podem escolher, fiquem com o nome de que mais gostarem.
eu continuarei chamando nosso pequeno herói de nosso pequeno herói.
porque na verdade ele não é um menino.
ele é um quadrado.
um quadrado com um metro de cada lado.
um quadrado violeta.
eu digo & repito:
nosso pequeno herói é um quadrado violeta com um metro de cada lado, que acredita profundamente que é um menino negro de oito anos de idade {ou dez anos, ou doze anos}.
um menino negro que às vezes é uma menina amarela.
uma menina amarela que às vezes é um menino vermelho.
um menino vermelho que às vezes é uma menina branca.
mas sempre com oito anos de idade.
ou dez anos.
ou doze anos.



você, meu pequeno herói, assistiu recentemente ao filme O Show de Truman, dirigido por Peter Weir.
nesse longa-metragem o protagonista vive numa cidade cenográfica, cercado de atores, câmeras & microfones ocultos, mas somente ele não sabe que o artificial é artificial.
que a simulação é uma simulação.
que a impostura é uma impostura.
ele acredita que é tudo real.
toda a sua vida nesse imenso estúdio de televisão – vida real para ele, mas secretamente roteirizada, com intervalos comerciais – vem sendo monitorada & transmitida em rede nacional.
o programa O Show de Truman é um sucesso estrondoso.
você assistiu ao filme O Show de Truman, dirigido por Peter Weir, e agora está desconfiado.
muito desconfiado.
você anda pela casa procurando câmeras & microfones ocultos.
você observa atentamente seus amigos, sua professora, seus vizinhos, tentando descobrir… ¿o quê?
tentando descobrir se essas pessoas tão familiares são atores contratados pra fingir que são seus amigos, sua professora, seus vizinhos.
você entra no escritório e diz para seu pai:
> fale a verdade.
> ¿o mundo é um teatro?
> ¿você é mesmo meu pai ou somente um ator contratado pra interpretar esse papel num programa de tevê?
seu pai pára de trabalhar no computador e olha muito sério pra você.
> ¿um ator? ¿eu?
> ¿você acha que eu não sou teu pai, mas um ator contratado pra interpretar esse papel num programa de tevê?
> ¿de onde você tirou essa ideia absurda?
você responde:
> do filme O Show de Truman.
seu pai diz:
> entendo…
ele pensa um pouco e responde, voltando a trabalhar no computador:
> não, meu filho… eu definitivamente não sou um ator. e nós definitivamente não estamos num estúdio de televisão.
você sai do escritório do seu pai, pensando:
¿será que ele falou a verdade?
¿ou será que o safado mentiu?
afinal ele deu a resposta que um ator também daria.
eu sei e ele sabe.
e ele sabe que eu sei que ele sabe.



você, meu pequeno herói, tem um amigo imaginário há vários anos.
na verdade, uma amiga.
uma divertida amiga imaginária.
¿o que é um ser humano?
¿qual é a sua essência?
¿se eu pegar uma pessoa e cortar seus pés e suas mãos, ela continuará sendo um ser humano?
¿e se eu cortar suas pernas, ela continuará sendo um ser humano?
¿e se eu continuar cortando?
¿se eu cortar seus braços, ela continuará sendo um ser humano?
¿e se eu for bastante radical e cortar tudo o que puder, todos os órgãos, deixando apenas o cérebro?
¿ainda terei meu querido ser humano?
¿quanto desse cérebro eu poderei fatiar, sem correr o risco de perder meu belo ser humano?
{vejam só o que o ócio incentiva…}
é em bobagens dessa natureza que você, meu pequeno herói, e teu amigo imaginário – tua amiga imaginária, na verdade – costumam ficar pensando quando não têm nada melhor pra fazer.



> ¿o que você tá desenhando?
> uma história em quadrinhos.
> ¿o que é essa caixa preta com braços e garras?
> este é Oroboro, o robô réprobo.
> ¿por que ele tá abrindo seu próprio corpo?
> Oroboro, o robô réprobo, foi programado pra acreditar que é um ser humano de verdade.
> putz, que merda.
> pois é… mas ele começou a suspeitar, e agora está dolorosamente abrindo seu abdome pra verificar o que tem dentro: órgãos humanos ou um sistema eletrônico.
> ¿coitado, e o que ele vai descobrir?
> Oroboro, o robô réprobo, vai descobrir que seu interior está cheio de órgãos humanos.
> apenas porque ele foi programado pra enxergar órgãos humanos onde há somente um sistema eletrônico…
> exato.
> putz, que merda.
> ¿sofrimento ducaralho, né? {sorriso}
> ¿por que você não muda isso? você é o autor, pode fazer o que quiser.
> é verdade. eu poderia dar consciência ao meu robô.
> ¿por que não faz?
> não sei… o sofrimento é mais interessante. {riso}
> sádico filhodaputa, você é phoda. {riso}



você, meu pequeno herói, tem um amigo imaginário há vários anos.
na verdade, uma amiga.
uma divertida amiga imaginária.
mas agora você fica imaginando se tua divertida amiga imaginária também fica imaginando que o divertido amigo imaginário dela É VOCÊ.



> teus olhos são tão bonitos.
> teus olhos também são lindos.
> tão bonita é tua boca.
> também é linda tua boca.
> teu cabelo, a luz do sol acariciando teu cabelo, que perfeição.
> teu cabelo, a luz do sol acariciando teu cabelo, que perfeição.
> meu amor por você é tão… tão intenso.
> meu amor por você também é fortíssimo.
> você é tão real pra mim.
> você também é profundamente real pra mim.
> a gente nunca conversou sobre… você sabe.
> é verdade, a gente nunca conversou sobre isso.
> a verdade.
> é… a verdade.
> ¿você sabe que você é só uma incrível amiga imaginária, não sabe? minha amiga imaginária. meu grande amor.
> ¿o quê? eu pensei que você soubesse que VOCÊ é só um incrível amigo imaginário. meu amigo imaginário. meu grande amor.
> ¿você nunca achou estranho que meus pais e meus amigos não conseguem enxergar você? pra eles você não existe, é apenas um fruto de minha fantasia.
> na verdade… ¿você nunca achou estranho que meus pais e meus amigos também não conseguem enxergar VOCÊ? pra eles você também não existe, é apenas um fruto de minha fantasia.



nosso pequeno herói apaixonado nunca mais reencontrou sua divertida amiga imaginária.
¿qual era mesmo o nome dela?
nosso pequeno herói não lembra.
¿como eram mesmo seus olhos, sua boca, seu cabelo?
nosso pequeno herói não lembra.
¿o timbre de sua voz, como era mesmo?
nosso pequeno herói não lembra.
por isso ele chora.
por isso ele não quer levantar do sofá.
nosso pequeno herói não lembra mais da presença física do amor de sua vida.
nem de sua presença espiritual.
não lembra mais…
desapareceu tudo.
para piorar a situação, nosso pequeno herói suspeita que a mesma coisa está acontecendo com ela.
com o amor de sua vida.
ela também provavelmente não lembra mais da presença física do nosso pequeno herói.
nem de sua presença espiritual.
não lembra mais…
desapareceu tudo.
¡que miséria!
amigos imaginários também sofrem & fazem sofrer.
mas a verdade é que…
nosso pequeno herói e o amor de sua vida…
¿quem é a pessoa de carne & osso e quem era o verdadeiro amigo imaginário?
nosso pequeno herói já não tem certeza.
¿será esta realidade a realidade real ou uma realidade imaginária?
¿se esta realidade fosse mesmo real, a manifestação de amigos imaginários seria impossível, não seria?
nosso pequeno herói já não tem certeza de nada.
por isso ele chora.
por isso ele não quer levantar do sofá.



eu digo & repito:
nosso pequeno herói é um quadrado violeta com um metro de cada lado, que acredita profundamente que é um menino negro de oito anos de idade.
ou dez anos.
ou doze anos.
um menino negro que às vezes é uma menina amarela.
uma menina amarela que às vezes é um menino vermelho.
um menino vermelho que às vezes é uma menina branca.
mas sempre com oito anos de idade.
ou dez anos.
ou doze anos.
os outros quadrados não entendem o que está acontecendo.
não entendem por que um quadrado violeta com um metro de cada lado acredita que é um ser humano vivendo no mundo dos seres humanos.
não sabem nada de amigos imaginários, reality shows, cidades, casas, escolas & famílias.
¡que absurdo!
na verdade, os outros quadrados não têm consciência.
eles não sentem nem raciocinam coisa alguma.
¿então como poderiam pensar sobre os seres humanos e suas tolices?



você, meu pequeno herói, terminou de ler o conto Equipe de ajuste, escrito por Philip K. Dick.
Nesse conto o protagonista descobre por acidente que os burocratas de uma organização poderosa & misteriosa manipulam a realidade.
¿de que maneira?
ajustando secretamente as pessoas – suas crenças e seus desejos – sem que elas saibam.
¿e por que fazem isso?
para manter sob seu controle o curso da História.
o destino da humanidade.
você terminou de ler o conto Equipe de ajuste, escrito por Philip K. Dick, e agora está desconfiado.
muito desconfiado.
¡¿e se os burocratas de uma organização poderosa & misteriosa estiverem mesmo manipulando a realidade?!
¡caraleo!
¿como saber a Verdade?
no conto escrito por Philip K. Dick o protagonista descobre a verdade acidentalmente…
agora você passeia pela escola e pelo seu bairro atento a tudo o que está acontecendo.
examinando os passantes.
investigando seu comportamento.
você, alerta feito uma raposa.
ou um falcão.
agora você passeia pela escola e pelo seu bairro tentando flagrar a menor incongruência.
o menor contrassenso.
o menor disparate.



você, meu pequeno herói, assistiu recentemente ao filme Matrix, dirigido pelas irmãs Lilly & Lana Wachowski.
nesse longa-metragem nossa realidade é na verdade uma simulação de computador.
a humanidade não sabe disso.
a humanidade está inconsciente.
adormecida.
aprisionada.
mas algumas poucas pessoas conseguiram se desconectar dessa simulação.
algumas poucas pessoas conseguiram escapar da prisão invisível da mente.
da armadilha da simulação.
da armadilha da impostura.
pouquíssimas pessoas.
¿bom pra elas, certo?
mais ou menos.
o problema é que nem mesmo essas pouquíssimas pessoas estão realmente satisfeitas.
¿por quê?
simplesmente porque elas não estão totalmente seguras de estarem vivendo no mundo real.
talvez essas pouquíssimas pessoas só estejam vivendo em outro nível da mesma simulação.
em outro nível da mesma prisão invisível da mente.
você assistiu ao filme Matrix, dirigido pelas irmãs Lilly & Lana Wachowski, e agora está desconfiado.
muito desconfiado.
você passa as horas e os dias procurando bugs no sistema.
falhas na programação.
você quer a verdadeira Verdade.
você quer despertar dessa realidade simulada.
dessa prisão invisível da mente.
mas não consegue.
por isso você chora.
por isso você não quer levantar do sofá.



você, meu pequeno herói, compartilhou sua inquietação com tua melhor amiga.
uma bonita & saudável menina amarela de oito anos de idade {ou dez anos, ou doze anos}, chamada Pombinha.
ou Oceania.
ou Pirlimpimpim.
ou Serelepe.
uma menina amarela que às vezes é um menino vermelho.
um menino vermelho que às vezes é uma menina branca.
uma menina branca que às vezes é um menino negro.
mas sempre com oito anos de idade.
ou dez anos.
ou doze anos.
então ela disse:
> esquisito.
então você disse:
> esquisito mesmo.
então ela disse:
> muito esquisito.
então você disse:
> ¿você também acha possível que nossa realidade seja na verdade uma simulação de computador?
então ela disse:
> é possível… mas também estou considerando outra coisa.
então você disse:
> ¿o quê?
então ela disse:
> ¿enquanto você assistia ao filme Matrix, dirigido pelas irmãs Lilly & Lana Wachowski, você pensou que talvez você assistindo ao filme Matrix, dirigido pelas irmãs Lilly & Lana Wachowski, fosse na verdade o filme de outras pessoas?
então você disse:
> não… não pensei nisso. mas faz sentido.
então ela disse:
> e agora eu estou pensando que talvez essas outras pessoas assistindo a você assistindo ao filme Matrix, dirigido pelas irmãs Lilly & Lana Wachowski, seriam na verdade o filme de outras pessoas, e assim por diante, numa regressão ao infinito.
então você disse:
> entendo… igual a essas fotos em que aparece uma pessoa segurando uma foto em que aparece a mesma pessoa segurando uma foto em que aparece a mesma pessoa segurando uma foto em que aparece a mesma pessoa segurando uma foto, infinitamente.
então ela disse:
> ou quando a gente fica parado entre dois espelhos posicionados um de frente para o outro.



taquicardia, náusea, sudorese, tremores, dor no peito…
calma, respira devagar.
inspiraaa e…
expiraaa.
inspiraaa e…
expiraaa.
você, meu pequeno herói, está tendo uma crise terrível.
uma crise de paranoia aguda.
você consumiu estimulantes demais.
misturou alhos com bugalhos.
em pouquíssimo tempo você, meu pequeno herói, abocanhou o conto As ruínas circulares.
mastigou o filme eXistenZ.
devorou os romances Ubik e Os três estigmas de Palmer Eldritch.
petiscou o filme Décimo terceiro andar.
deglutiu o romance Simulacron-3.
papou o filme Inception.
lanchou o romance O congresso de futurologia.
engoliu o filme O predestinado.
ingeriu o conto Duzentas mil horas.
beliscou o filme Os outros.
almoçou o romance Não me abandone jamais.
jantou o filme Lunar.
taquicardia, náusea, sudorese, tremores, dor no peito…
calma, respira devagar.
inspiraaa e…
expiraaa.
inspiraaa e…
expiraaa.
você, meu pequeno herói, está tendo uma crise terrível.
uma crise de paranoia aguda.
você consumiu estimulantes demais.
foi uma orgia romana.
um banquete horroso de Jorge Luis Borges David Cronenberg Philip K. Dick Josef Rusnak Daniel F. Galouye Christopher Nolan Stanislaw Lem Peter & Michael Spierig Olyveira Daemon Alejandro Amenábar Kazuo Ishiguro Duncan Jones e de sobremesa ainda teve umas gravuras do M.C. Escher que você saboreou escondido, ¿não foi, safadinho?
calma, respira devagar.
inspiraaa e…
expiraaa.
inspiraaa e…
expiraaa.
repete comigo:
> não saber TUDO sobre a realidade não quer dizer que TUDO o que sabemos sobre a realidade é falso.
de novo.
repete comigo:
> não saber TUDO sobre a realidade não quer dizer que TUDO o que sabemos sobre a realidade é falso.
de novo.
repete comigo:



vamos chamar de Serelepe a pequena amiga de nosso pequeno herói.
poderia ser Pombinha.
ou Oceania.
ou Pirlimpimpim.
mas eu gosto mais de Serelepe.
nosso pequeno herói conheceu essa bonita & saudável menina amarela de oito anos de idade {ou dez anos, ou doze anos} na escola.
mais precisamente no corredor mais comprido, recém-encerado.
mais precisamente durante uma competição de patinação de meias.
assim que a equipe de limpeza deixou o local, nosso pequeno herói e seus amigos tiraram os tênis e dispararam no piso superdeslizante.
na algazarra, nem perceberam que no sentido contrário vinha a bonita & saudável menina amarela de oito anos de idade {ou dez anos, ou doze anos} e suas amigas.
vinham de meias, patinando sem freio.
também em altíssima velocidade.
as meninas.
os meninos.
gargalhadas.
alarido.



{¿uma complexa konstruçäo mental?}



num local fora do tempo e do espaço existe a realidade dos quadrados.
esse local sempre existiu & sempre existirá.
os quadrados de todos os tipos flutuam em silêncio nessa vasta região ideal.
se pensarmos bem, os verdadeiros quadrados só existem aqui.
¿por que os verdadeiros quadrados só existem aqui?
porque, minhas queridas & meus queridos, somente esses quadrados são figuras geométricas perfeitas.
somente aqui os quadrados apresentam os quatro lados absolutamente iguais.
até mesmo {obviamente} o maior quadrado possível.
¿não consigo imaginar seu tamanho, vocês conseguem?
até mesmo {obviamente} o menor quadrado possível.
¿não consigo imaginar seu tamanho, vocês conseguem?
nesse local fora do tempo e do espaço existe apenas a realidade dos quadrados.
aqui não há tristeza nem alegria.
aqui não há frio nem calor.
aqui também não há passado nem futuro.
as coisas jamais mudaram e jamais mudarão.
esse local sempre existiu e sempre existirá.
os quadrados de todos os tipos flutuam em silêncio nessa vasta região ideal.
somente aqui os quadrados apresentam os quatro lados absolutamente iguais.
somente aqui os quadrados apresentam o mesmo número de átomos em cada lado.
sem sofrer qualquer desgaste.
eternamente.
em nosso mundo não existem quadrados tão perfeitos assim.
sendo bastante rigorosos, devemos afirmar que em nosso mundo não existem quadrados.



clonagem.
tua melhor amiga assistiu a um filme sobre pessoas clonadas.
uma empresa de saúde clonava milionários e mantinha as cópias numa ilha, vivendo mais ou menos satisfeitos longe da civilização.
mas os clones não sabiam que eram clones.
os clones não sabiam que eram doadores involuntários de órgãos.
sempre que um milionário precisava de um coração ou de pulmões em ótimo estado…
¿creio que já deu pra entender, certo?
¿também não preciso dizer que a expectativa de vida dos valorosos clones era curtíssima, preciso?



o título do filme:
A ilha
o diretor:
Michael Bay



¿quem consegue dizer com absoluta certeza em que ponto uma história começa?
¿quem consegue dizer com absoluta certeza em que ponto uma história termina?
eu digo & repito:
nosso pequeno herói existe num local fora do tempo e do espaço.
nosso pequeno herói existe na realidade dos quadrados.
esse local sempre existiu e sempre existirá.
os quadrados de todos os tipos flutuam em silêncio nessa vasta região ideal.
aqui não há nascimento nem morte.
deuses & demônios não existem aqui.
nosso pequeno herói é um quadrado eterno.
eu digo & repito:
nosso pequeno herói é um quadrado violeta com um metro de cada lado, que acredita profundamente que é um menino negro de oito anos de idade.
ou dez anos.
ou doze anos.
um menino negro que às vezes é uma menina amarela.
uma menina amarela que às vezes é um menino vermelho.
um menino vermelho que às vezes é uma menina branca.
mas sempre com oito anos de idade.
ou dez anos.
ou doze anos.
nosso pequeno herói não suspeita que é apenas um quadrado.
um quadrado violeta imaginário.
mas ele já começou a suspeitar que a realidade não é o que parece ser.
tudo começou de maneira bastante singela.
tudo começou com um peça de teatro.



havia um sítio.
havia duas velhas mulheres, uma branca e uma negra.
havia uma menina e um menino.
e uma boneca de pano e um sabugo de milho.
e umas criaturas mágicas.
nosso pequeno herói ficou encantado.
nosso pequeno herói tinha seis anos de idade.
a apresentação aconteceu no teatro da pré-escola.
o problema foi que, depois dos aplausos, as duas velhas, a menina e o menino, a boneca de pano e o sabugo de milho e as criaturas mágicas, todos tiraram a maquiagem e o figurino, e foram embora sem magia nem encantamento.
nosso pequeno herói ficou perplexo.
nosso pequeno herói não estava entendendo…
então a bondosa professora de nosso pequeno herói explicou:
> eles são atores, meu docinho.
então a amorosa mamãe de nosso pequeno herói explicou:
> eles apenas fingem, no palco.
mas as explicações não explicaram quase nada.
desde então, sempre que assiste a uma peça de teatro, nosso pequeno herói fica dividido entre duas possibilidades.
duas possibilidades extremas.
¿o que são os atores?
¿são pessoas normais que fingem ser pessoas & criaturas mágicas, quando estão no palco?
¿ou são pessoas & criaturas mágicas que fingem ser pessoas normais, quando não estão no palco?



{¿um refinado processo intracraniano?}



você, meu pequeno herói, compartilhou sua inquietação com tua melhor amiga.
uma bonita & saudável menina amarela de oito anos de idade {ou dez anos, ou doze anos}, chamada Pombinha.
ou Oceania.
ou Pirlimpimpim.
ou Serelepe.
uma menina amarela que às vezes é um menino vermelho.
um menino vermelho que às vezes é uma menina branca.
uma menina branca que às vezes é um menino negro.
mas sempre com oito anos de idade.
ou dez anos.
ou doze anos.
você disse:
> ¿acha uma boa ideia eu conversar com os atores, perguntar a eles?
então ela disse:
> ¿de que adiantaria? se forem bons atores, se forem atores insuperáveis, a gente nunca terá certeza se estão mentindo ou falando a verdade.
então você disse:
> a gente nunca terá certeza se estão representando ou não…
então ela disse:
> ¿se disserem que são pessoas normais que fingem ser pessoas & criaturas mágicas, quando estão no palco, como saber se são pessoas normais contando uma mentira {melhor dizendo, ainda interpretando um papel} ou se são pessoas normais falando a verdade?
então ela disse:
> ¿se disserem que são pessoas & criaturas mágicas que fingem ser pessoas normais, quando não estão no palco, como saber se são pessoas & criaturas mágicas contando uma mentira {melhor dizendo, ainda interpretando um papel} ou se são pessoas & criaturas mágicas falando a verdade?
então ela pensou mais um pouco e disse:
> pensando bem, tanto faz se forem bons atores, se forem atores insuperáveis, ou se forem maus atores, se forem uns canastrões da pior espécie… é, meu amigo… tanto faz… a resposta dos maus atores também será inconclusiva, pois ainda não saberemos se estão mentindo de um jeito canastrão, nada convincente {melhor dizendo, se ainda estão interpretando mal um papel}, ou se estão dizendo a verdade de um jeito canastrão, nada convincente.



você, meu pequeno herói, e tua melhor amiga, vocês estão sentados num banco de praça.
estão sentados, quietos, observando a praça deserta.
¿mas será que a praça está mesmo deserta?
você, meu pequeno herói, e tua melhor amiga, vocês observam demoradamente a praça.
observam, quase sem piscar, o extenso piso de granito cinza.
os outros bancos, sem ninguém sentado.
o coreto.
a fonte.
os arbustos, as flores e as árvores do jardim ao redor.
não há ninguém em parte alguma.
¿mas será que a praça está mesmo deserta?
então você diz:
> ¿está conseguindo enxergar alguém?
então sua amiga diz:
> ninguém.
tua melhor amiga leu um romance sobre duas cidades imbricadas, entremeadas, misturadas.
duas cidades ocupando a mesma região.
ocupando o mesmo espaço geográfico.
mas os cidadãos de uma cidade não enxergavam nada da outra cidade.
não enxergavam seus moradores.
seus prédios.
seu trânsito.
não enxergavam nada.
não escutavam nada.
não farejavam nem degustavam nadinha.
não tocavam coisa alguma.
os cidadãos das duas cidades eram condicionados desde pequenos a não perceber a outra cidade.
essa era a Lei.
então você, meu pequeno herói, e tua melhor amiga, vocês estão se perguntando se essa Lei se aplica também a vocês.
a vocês e a todos os cidadãos de sua cidade.
essa Lei.
esse condicionamento absoluto.
então você diz:
> ¿o que nossos sentidos não conseguem captar existe ou não existe?
então sua amiga diz:
> talvez nossos sentidos estejam captando alguma coisa, mas nossa mente esteja se recusando a registrar.
então você diz:
> ¿o que nossos sentidos talvez estejam captando mas nossa mente esteja se recusando a registrar existe ou não existe?
então sua amiga diz:
> o que nossos sentidos talvez estejam captando mas nossa mente esteja se recusando a registrar praticamente não existe.
> ¿como poderia existir?



o título do romance:
A cidade & a cidade
o autor:
China Miéville



Serelepe…
{isso mesmo, vamos chamar de Serelepe a pequena amiga de nosso pequeno herói.}
Serelepe pegou um frasco de comprimidos coloridos.
pegou do fundo da última gaveta do grande guarda-roupa.
do grande guarda-roupa do quarto dos seus pais.
um frasco de comprimidos coloridos escondido numa bolsinha de couro.
escondido numa bolsinha de couro com mais meia dúzia de frascos de comprimidos.
a pequena Serelepe pegou esse frasco de comprimidos coloridos e saiu de fininho.
seu desatento papai não percebeu.
sua desatenta mamãe não percebeu.
seus distraídos irmãos maiores não perceberam.
a pequena Serelepe levou o frasco de comprimidos coloridos pra escola.
durante o recreio, atrás da quadra de basquete, a pequena Serelepe abre o frasco.
a pequena Serelepe abre o frasco e entrega um comprimido arco-íris ao nosso pequeno herói.
e entrega um comprimido arco-íris a cada uma das crianças presentes.
são no total oito crianças.
durante o recreio.
atrás da quadra de basquete.
a pequena Serelepe engole um comprimido arco-íris.
nosso pequeno herói engole um comprimido arco-íris.
as outras crianças engolem um comprimido arco-íris.
toca o sinal, encerrando o recreio.
as oito crianças voltam pra sala de aula.
voltam com as pupilas douradas.



você, meu pequeno herói, está encantado.
profundamente fascinado.
você.
hipnotizado.
a beleza das cores…
a intensidade dos cheiros…
a sutileza dos ruídos…
nunca antes a sala de aula lhe pareceu tão Real.
tão cintilante.
a professora irradia vigor & inteligência.
as paredes e as janelas irradiam vigor & inteligência.
as crianças ao redor irradiam vigor & inteligência.
a brisa do ventilador irradia vigor & inteligência.
você, meu pequeno herói, consegue escutar todos os sons da escola, mas sem se confundir.
teus pensamentos estão organizados.
o tempo do relógio passa mais devagar.
bem mais devagar.
agora começa a chover.
e a chuva é magnífica.
ancestral.
é a chuva de todos os tempos & lugares.
a chuva imóvel, ou quase.
você, meu pequeno herói, contempla os exercícios de matemática.
você contempla.
você.
os exercícios de matemática que a professora iluminada escreveu no quadro-negro iluminado.
você contempla & resolve rapidamente os exercícios.
sem precisar escrever no caderno iluminado.
você resolve de cabeça.
ah, meu pequeno herói, parece que você ficou um pouco mais inteligente.
¿é impressão minha ou a superfície da carteira está mais confortável?
¿é impressão minha ou o sabor da bala de mel está mais intenso?
¿é impressão minha ou respirar nunca foi tão prazeroso?
¿é impressão minha ou agora tudo faz sentido no planeta?
¿no universo?
¿em você?



{sistema nervoso, sinapses, impulsos elëtricos, reaçöes quymicas…}



você, meu pequeno herói, e tua melhor amiga, vocês estão sentados na areia.
diante do oceano.
assistindo ao pôr do sol.
mentira.
ainda falta muito para o pôr do sol.
vocês estão sentados na areia, admirando as ondas fracas.
nenhum surfista à vista.
vocês não estão mais encantados.
não estão mais profundamente fascinados.
vocês.
não estão mais hipnotizados.
a beleza das cores…
a intensidade dos cheiros…
a sutileza dos ruídos…
tudo isso desapareceu.
adeus, pupilas douradas.
adeus, comprimidos arco-íris.
você, meu pequeno herói, e tua melhor amiga, vocês voltaram a ser o que eram antes.
o que eram antes das pupilas douradas.
agora o que mais incomoda você, meu querido, é saber:
¡¿quem é você de verdade?!
hum… ¿por que tanto drama?
tudo porque você descobriu que há duas versões:
há a maçante versão sem as pupilas douradas.
e há a incrível versão com as pupilas douradas.
¿quem é você de verdade?
agora o que mais incomoda tua melhor amiga, meu querido, é saber:
¡¿quem é ela de verdade?!
hum… ¿por que tanto drama?
tudo porque ela também descobriu que há duas versões:
há a maçante versão sem as pupilas douradas.
e há a incrível versão com as pupilas douradas.
¿quem é ela de verdade?
gaivotas grasnam perto de você, meu pequeno herói.
perto de você e de tua melhor amiga, Serelepe.
gaivotas comuns.
sem graça.
gaivotas que não irradiam vigor & inteligência.
numa praia em que nada irradia vigor & inteligência.



nosso pequeno herói não é um menino.
na verdade ele é um quadrado.
um quadrado com um metro de cada lado.
um quadrado violeta.
como é possível um quadrado sem vida,
sem consciência,
um objeto geométrico…
¿como é possível um simples quadrado acreditar que é um menino de verdade?
no reino dos quadrados não existe consciência.
no reino dos quadrados não existem virtude ou vício.
no reino dos quadrados não existe violência de espécie alguma.
no reino dos quadrados não existe humanidade.
não existe.



você, meu pequeno herói, leu muitos livros e assistiu a muitos filmes.
você aprecia demais as obras que inquietam.
que desafiam o senso comum.
que bagunçam as certezas.
as obras mais perigosas.
mas tem um livro que você ainda não leu.
um livro que você tem medo de abrir.
¿qual livro?
estou falando do famoso romance do teólogo Edwin Abbott Abbott, intitulado Planolândia.
você tem esse livro em casa.
tua melhor amiga ofereceu esse livro a você de presente no teu aniversário.
mas você ainda não leu.
você tem medo de abrir.
você tem pavor de abrir.
você tem pavor.
porque você sabe.
sim, você sabe.
o herói desse romance do século dezenove, vejam só, é um ingênuo quadrado.



você, meu pequeno herói, sonha todas as noites.
você.
sonha que é uma figueira.
sonha que é um brontossauro.
sonha que é um vulcão.
sonha que é uma baleia.
sonha que é uma estrela.
sonha que é um super-herói.
sonha que é uma borboleta.
mas ao acordar você não é idiota de achar que é uma borboleta.
uma borboleta sonhando que é um menino.
igual aquele filósofo.
Chuang Tzu.
¡que besteira!
aquele filósofo que depois de passear muito, durante um dia ensolarado, deitou sob uma amoreira e mergulhou num sono profundo.
num sonho profundo.
Chuang Tzu.
aquele filósofo que sonhou que era uma borboleta passeando muito, durante um dia ensolarado.
aquele filósofo que acordou aterrorizado.
Chuang Tzu.
> ¿putaquipariu, quem sou eu?
> ¿sou um homem que sonhou que era uma borboleta?
> ¿ou sou uma borboleta sonhando que é um homem?

¡que besteira!

não, meu pequeno herói, você sabe muito bem o que é estar sonhando e o que é estar acordado.
ou pelo menos acredita que sabe.
mas pense bem…
¿e se tua vida {acordada ou dormindo} for o sonho de outra criatura?
é sobre essa possibilidade-borboleta que tua melhor amiga especula:
> considere isso:
> ¿e se o que chamamos de realidade for o sonho de outra criatura?
> ¿de uma criatura maior do que o universo?
> ¿de uma criatura que está dormindo, sonhando o universo?



você, meu pequeno herói, hoje está se sentindo diferente.
com essa máscara.
com esse traje azul escuro.
com essas luvas e esse sapatos incomuns.
com esse cabelo tingido de violeta-púrpura.
você não ganhou superpoderes.
mesmo vestido de super-herói.
você não ficou mais forte ou mais rápido.
teus olhos não disparam raios laser.
você não voa nem salta grandes distâncias.
teu traje e tua pele não são à prova de balas.
mesmo assim hoje você está se sentindo diferente.
porque você, meu pequeno herói, hoje está diferente entre diferentes.
participando de um fabuloso,
multicolorido,
eufórico,
supercompetitivo
campeonato mundial de cosplay.
¡ah, que maravilha!
é tanta gente satisfeita & alegre, que você, meu pequeno herói,
{diferente entre diferentes}
fica se perguntando se a verdadeira identidade dessas pessoas não está aqui,
finalmente exposta, finalmente visível,
enquanto sua identidade cotidiana, artificial,
é uma simples fantasia, uma simples camuflagem
na dogmática selva da sobrevivência.



{¿uma complexa konstruçäo mental?}

{¿um refinado processo intracraniano?}

{sistema nervoso, sinapses, impulsos elëtricos, reaçöes quymicas…}



você, meu pequeno herói, assistiu recentemente ao filme Vanilla sky, dirigido por Cameron Crowe.
nesse longa-metragem o protagonista milionário está morto há décadas.
seu corpo é mantido cuidadosamente congelado.
seu corpo é mantido num sofisticado esquife de nitrogênio líquido.
em suspensão criogênica.
o protagonista milionário do filme Vanilla sky, dirigido por Cameron Crowe, está morto há décadas, mas sonhando uma realidade em que está vivo.
uma realidade incrivelmente real.
de novo a inquietação de Chuang Tzu.
será que você, meu pequeno herói…
será que você…
será que…
de novo Chuang Tzu.
de novo Chuang Tzu.



¿uma disfarçada mão invisível?
¿conseguem ver?
¿uma disfarçada mão invisível está movendo os prédios ao nosso redor?
¿uma gigantesca mão invisível?
fumaça fininha.
moleza gostosinha.
¿pra onde vão as pessoas e as coisas?
¿pra onde vão as pessoas e as coisas quando ninguém está olhando?
você, meu pequeno herói, e tua melhor amiga, Serelepe, e outros queridos amigos, apertam o mato, queimam uma ponta, puxam um beque, dão um tapa na pantera, fumam um baseado.
depois caminham pela cidade.
conversam animadamente.
sobre literatura & música pop.
sobre mangás & animês.
se divertem.
então um dos amigos diz:
> olhem pra cima… ¿não parece que uma disfarçada mão invisível está movendo os prédios ao nosso redor? ¿uma gigantesca mão invisível? ¿conseguem ver?
então outro amigo diz:
> ¿como se a gente estivesse num imenso cenário?
e o primeiro amigo diz:
> exatamente… num cenário gigantesco. num cenário que precisa ser ajustado constantemente, conforme a gente anda.
todos riem, brincam.
lembram que no filme Cidade das sombras, dirigido por Alex Proyas, acontece algo parecido.
todos riem, brincam, menos você, meu pequeno herói.
então outro amigo diz:
> ¿pra onde vão as pessoas e as coisas quando ninguém está olhando?
todos acham essa pergunta engraçada.
menos você, meu pequeno herói.
você já pensou muitas vezes nessa questão.
sem chegar a conclusão alguma.
então tua melhor amiga diz:
> eu espero sinceramente que elas continuem existindo mesmo se ninguém estiver olhando.
então seu amigo diz:
> talvez elas simplesmente desapareçam, e voltem a aparecer apenas quando alguém estiver olhando novamente.
então tua melhor amiga diz:
> ¿haveria um jeito de saber a verdade?
então seu amigo diz:
> ¿se houvesse um jeito de saber a verdade alguém já saberia a verdade, certo?
então você diz:
> a gente teria que ser mais rápido que as pessoas e as coisas quando ninguém está olhando.
então seu amigo diz:
> ¿se houvesse um jeito de ser mais rápido alguém já teria sido mais rápido, certo?
então tua melhor amiga diz:
> é uma simples questão de lógica: se as pessoas e as coisas parecem estar sempre aqui, isso pode ser explicado por dois fenômenos:
> um: que as pessoas e as coisas estão sempre aqui, estejamos olhando ou não.
> dois: que as pessoas e as coisas realmente desaparecem quando ninguém está olhando e reaparecem quando alguém está olhando, e fazem isso na velocidade do nosso olhar.
> então, mesmo que olhemos mais rápido ainda, nunca conseguiremos olhar mais rápido do que nosso próprio olhar.



você, meu pequeno herói, às vezes ergue a cabeça.
às vezes olha para o alto.
para as nuvens.
para as estrelas.
¿à procura do quê?
você às vezes pensa no romance Planolândia
e olha para o alto.
você sabe que o herói do célebre romance de Edwin Abbott Abbott é um inocente quadrado vivendo num mundo plano.
num mundo bidimensional.
você não leu o livro.
você ainda não teve coragem de ler o livro.
mas você sabe que o herói do célebre romance de Edwin Abbott Abbott é um ingênuo quadrado vivendo num mundo plano porque tua melhor amiga te contou.
um ingênuo quadrado vivendo num mundo de formas geométricas que não conhecem outras dimensões além de comprimento & largura.
você sabe.
até o dia em que uma forma tridimensional – uma esfera – arrebata nosso ingênuo herói bidimensional e o leva para o alto.
é claro que essa experiência transforma radicalmente a cosmovisão de nosso ingênuo quadrado.
é por isso que você, meu pequeno herói, às vezes ergue a cabeça.
às vezes olha para o alto.
para as nuvens.
para as estrelas.
¿à procura do quê?
obviamente à procura da forma tetradimensional que o arrebatará.
obviamente à procura da criatura de quatro dimensões físicas – ¿um tesserato? – que o levará não para o alto, mas para a quarta dimensão física que você ainda não sabe qual é.
para a quarta dimensão física que você ainda não tem como saber qual é.
você, meu pequeno herói, às vezes ergue a cabeça.
às vezes olha para o alto.
para as nuvens.
para as estrelas.
e se pergunta:
¿seria a Planolândia somente uma criação literária?
¿uma alegoria?
ninguém sabe com certeza.
tudo o que sabemos é que a Planolândia não é a espetacular realidade dos quadrados eternos.
eu digo & repito:
num local fora do tempo e do espaço existe a realidade dos quadrados.
esse local sempre existiu & sempre existirá.
os quadrados de todos os tipos flutuam em silêncio nessa vasta região ideal.
eterna.
perfeita.
imutável.
você, meu pequeno herói, às vezes ergue a cabeça.
às vezes olha para o alto.
para as nuvens.
para as estrelas.
mesmo sabendo que a forma tetradimensional que o arrebatará, se um dia aparecer, poderá vir de qualquer lado.
poderá vir de cima.
poderá vir de baixo.
poderá vir da esquerda.
poderá vir da direita.
poderá vir de dentro de você.
eu digo & repito:
poderá vir de qualquer lado.



eu digo & repito:
nosso pequeno herói é um quadrado violeta com um metro de cada lado, que acredita profundamente que é um menino negro de oito anos de idade.
ou dez anos.
ou doze anos.
um menino negro que às vezes é uma menina amarela.
uma menina amarela que às vezes é um menino vermelho.
um menino vermelho que às vezes é uma menina branca.
mas sempre com oito anos de idade.
ou dez anos.
ou doze anos.
eu digo & repito:
nosso pequeno herói é um menino negro de oito anos de idade.
ou dez anos.
ou doze anos.
um bonito & saudável menino negro de oito anos de idade {ou dez anos, ou doze anos}, chamado Pandemônio.
ou Lusco-Fusco.
ou Curupira.
ou Pirlimpimpim.
aliás, vocês podem escolher, fiquem com o nome de que mais gostarem.
eu continuarei chamando nosso pequeno herói de nosso pequeno herói.
porque na verdade ele não é um menino.
ele é um quadrado.
um quadrado com um metro de cada lado.
um quadrado violeta.



a aula de língua portuguesa terminou.
você, meu pequeno herói, começa a recolher teu material escolar e percebe que alguém enfiou um panfleto em tua mochila.
um panfleto misterioso que diz:

¡TUDO É MÁQUINA, PUTADA!

máquina é matéria-energia.
universo é máquina macrocósmica.
átomo é máquina microcósmica.
corpo é máquina biológica.
mente & consciência são produtos da máquina-corpo.
idioma é máquina verbal.
arte-literatura é máquina estética.
filosofia é máquina teórica.
ciência é máquina prática.
política é máquina administrativa.
religião é máquina-placebo.
alma imortal é papo-furado.
nasceu, viveu, foi feliz ou foi infeliz, foi rico ou foi pobre, viajou ou não viajou, foi genial ou foi imbecil, amou ou odiou, foi pacífico ou foi violento, foi altruísta ou foi egoísta, foi respeitado ou foi humilhado, leu Ulysses ou não leu Ulysses, tudo bem… morreu jovem ou morreu velho, tanto faz, acabou, será esquecido. viver & morrer são processos maquínicos. sugestão: aproveite a vida, seja grato, ela é única.
¿o que é a vida?
Erwin Schrödinger:
> coisas vivas evitam o máximo possível se decompor em desordem e cair no equilíbrio da não-vida.
melhor dizendo:
> coisas vivas {são máquinas complexas que} evitam o máximo possível se decompor em desordem e cair no equilíbrio da não-vida.



{¿uma complexa konstruçäo mental? ¿um refinado processo intracraniano? sistema nervoso, sinapses, impulsos elëtricos, reaçöes quymicas…}

{neurônios digerindo & codificando as informaçöes sensoriais, criando um modelo virtual do mundo…}

{uma simulaçäo dissonante, uma konstruçäo kontaminada por nossas memörias & emoçöes.}



o panfleto misterioso trazia uma assinatura:
Oroboro, o robô réprobo



{distraído da aula de matemática, nosso pequeno & entediado herói começa uma fanfic.}
Morpheus > Você toma a pílula azul e nossa história termina. Você acorda em sua cama e continua acreditando no véu de Maya. Você toma a pílula vermelha, permanece no País das Maravilhas e eu te mostro o quão profunda é a toca do coelho.
Neo > ¿e a pílula cinza?
Morpheus > ¿que pílula cinza?
Neo > ¿essa que apareceu entre as duas, flutuando no ar?
Morpheus > estranho… não faço a menor ideia. Trinity, pessoal, venham aqui. alguém consegue me dizer o que…
{Neo engole a pílula cinza, na verdade uma jujuba meio apimentada, e rapidamente descobre a verdade: ele é apenas um personagem numa obra de ficção.}



{ideia pra uma fanfic de O Show de Truman: o protagonista, depois de escapar do estúdio de televisão, descobre que todas as pessoas do suposto mundo real também não passam de personagens numa obra de ficção.}



¿quando nosso pequeno herói se tornar um xamã, a magia psicodélica e o esplendor da natureza mostrarão?
¿mostrarão que a dança da Realidade nada mais é que uma complexa construção mental?
¿um refinado processo intracraniano?
¿sistema nervoso, sinapses, impulsos elétricos, reações químicas?
¿mostrarão que falar em Realidade é falar basicamente em redes de neurônios digerindo & codificando as informações sensoriais?
¿criando um modelo virtual do mundo?
¿quando nosso pequeno herói se tornar um físico teórico, a matemática quântica & cosmológica mostrarão?
¿mostrarão que a dança da Realidade nada mais é que uma complexa construção mental?
¿um refinado processo intracraniano?
¿sistema nervoso, sinapses, impulsos elétricos, reações químicas?
¿mostrarão que falar em Realidade é falar basicamente em redes de neurônios digerindo & codificando as informações sensoriais?
¿criando um modelo virtual do mundo?
¿quando nosso pequeno herói se tornar um meta-humano cibernético de cem mil anos ou mais, suas habilidades quase divinas e suas conexões profundas com a matéria e a energia do cosmos mostrarão?
¿mostrarão que a dança da Realidade {ainda} nada mais é do que uma complexa construção mental?
¿um refinado processo algorítmico?
¿sistema nervoso {natural & artificial}, sinapses, impulsos elétricos, reações químicas?
¿mostrarão que falar em Realidade {ainda} é falar basicamente em redes {biológicas & eletrônicas} de neurônios digerindo & codificando as informações sensoriais?
¿{ainda} criando um modelo virtual do universo?
¿então nosso pequeno herói, uma singela marionete entre marionetes, finalmente enxergará seus fios?
¿então nosso pequeno herói, um singelo quadrado entre quadrados, finalmente enxergará seus lados?



um livrão.
robusto mesmo.
um livrão supergrosso de filosofia.
Serelepe, a melhor amiga de nosso pequeno herói, mostra um livrão supergrosso de filosofia e pergunta ao nosso pequeno herói se ele está interessado.
nosso pequeno herói encara o livrão supergrosso de filosofia e torce o nariz.
> pra mim chega.
tudo o que os livros e os filmes forneceram até agora ao nosso pequeno herói foram dúvidas & angústia.
confusão & sofrimento mental.
Serelepe, a melhor amiga de nosso pequeno herói, coloca o livrão supergrosso de filosofia em cima da mesa.
expressão marota…
Serelepe coloca o livrão supergrosso de filosofia em cima da mesa, segura firme as folhas e vai soltando devagar.
dois personagens engraçados começam a rebolar e a dar patetas cambalhotas.
dois personagens engraçados desenhados a lápis no canto inferior das páginas.
as folhas passam e os dois personagens engraçados desenhados a lápis no canto inferior das páginas continuam rebolando e dando patetas cambalhotas.
nosso pequeno herói…
os olhos, o nariz, a boca, todo o rosto do nosso pequeno herói sorri.
um sorrisão pateta.
robusto mesmo.



{¿entäo o grande problema ë o desejo, certo? ¡a vontade visceral! enquanto os animais vivem sua vidinha ignorante, totalmente imersos & satisfeitos na prisäo da ilusäo, nös somos forçados a desejar a liberdade. mas uma liberdade inalcançävel.}



eu digo & repito:
num local fora do tempo e do espaço existe a realidade dos quadrados.
esse local sempre existiu e sempre existirá.
os quadrados de todos os tipos flutuam em silêncio nessa vasta região ideal.
eles se movem sem se mover.
eles envelhecem sem envelhecer.
para uns existe a escuridão da noite eterna, para outros a luz do dia eterno.
mesmo não existindo escuridão nem luz.
mesmo não existindo noite ou dia.
não há veias nem artérias por onde o sangue possa correr.
não há sangue.
não há revoluções nem guilhotinas.
não há seiva.
não há nutrientes de qualquer espécie.
então, me digam…
como é possível um quadrado sem vida,
sem consciência,
um objeto geométrico…
¿como é possível um simples quadrado acreditar que é um menino de verdade?
no reino dos quadrados não existe consciência.
no reino dos quadrados não existem virtude ou vício.
no reino dos quadrados não existe violência de espécie alguma.
no reino dos quadrados não existe humanidade.
então, me digam…
¿como é possível?



esse é Oroboro, o robô réprobo.
Oroboro, o robô réprobo, foi programado pra acreditar que é um ser humano de verdade.
um ser humano mecanicista, pra quem TUDO É MÁQUINA.
> por exemplo, o corpo humano blablablá é uma máquina blablablá que funciona mediante uma mecânica metabólica blablablá…
esse é Oroboro, o robô réprobo.
tomem muito cuidado, meus queridos.
o sujeito é um chato-de-galochas.
um mecanicista da pior espécie:
do tipo circular.
tautológico.
se vocês o encontrarem na rua, fujam para as montanhas.
não hesitem.
do contrário ele tentará convencer vocês a fazer parte do seu maçante grupo de estudo.
atualmente esse grupo enfadonho está estudando o livro O homem-máquina, de Julien Offray de La Mettrie.
esse maçante grupo enfadonho está estudando esse livro há mais de cem anos.
¡há mais de um século!
¡cacete, ninguém merece!
esse é Oroboro, o robô réprobo.
tomem muito cuidado, meus queridos.
não hesitem.
se vocês o encontrarem na rua, fujam para as montanhas.
Oroboro, o robô réprobo, está certíssimo.
TUDO É MESMO MÁQUINA.
porém, mesmo certíssimo, o sujeito é um chato-de-galochas.



¿existirá mesmo o reino dos quadrados?
¿ou nosso pequeno herói subitamente acordará para a Verdade?
¿para a Verdade de que ele é apenas texto?
¿apenas palavras, palavras, palavras, palavras num página em branco?
¿apenas um inquieto & inquietante fluxo literário?
¿apenas um personagem numa obra de ficção?
¿sem órgãos nem lados?



ai ai, meu Jesus Cristim…
aqui vamos nós de novo…
parece até o eterno retorno.
você, meu pequeno herói, leu recentemente o conto All you zombies, escrito por Robert A. Heinlein.
nesse conto um homem é filho de si mesmo.
exatamente: ele é seu pai e sua mãe, e também outros personagens da narrativa, dos dois sexos, em diferentes momentos de sua vida.
mas apenas sua versão masculina mais velha sabe disso.
as outras versões não suspeitam de nada.
¿de que maneira essa excentricidade aconteceu?
o homem é um viajante no tempo, é claro.
você leu o conto All you zombies, escrito por Robert A. Heinlein, e agora está desconfiado.
muito desconfiado.
¿será que você também não é filho de si mesmo?
¿será que você e tua melhor amiga não são a mesma pessoa?
¿em diferentes momentos de sua vida?



você, meu pequeno herói, e tua melhor amiga, Serelepe, vocês estão sentados na areia.
diante do oceano.
assistindo ao pôr do sol.
hoje tua melhor amiga parece diferente.
menos pesada.
mais radiante.
cintilante.
iluminada.
parece até que ela descobriu o supremo segredo…
a verdadeira verdade…
você, meu pequeno herói, continua o mesmo.
pesado.
escuro.
você, meu pequeno herói, leu recentemente a história em quadrinhos A insustentável leveza do ser, desenhada pela Laerte Coutinho.
em poucas páginas – apenas seis – um jovem protagonista é atingido com violência pela verdade da vida:
seu pai não é seu pai, é uma mulher disfarçada de homem.
sua mãe não é sua mãe, é um homem disfarçado de mulher.
sua irmã atual é uma de muitas atrizes contratadas pra interpretar o papel de irmã…
e no final, após nosso herói descobrir que não é um jovem branco, mas um jovem preto retinto, a grande revelação:
a cidade é uma pintura na parede.
>O mundo é falso.
¿compreende?
>O mundo é falso.
você, meu pequeno herói, comenta com tua melhor amiga.
menos pesada.
mais radiante.
cintilante.
iluminada.
você comenta a história em quadrinhos A insustentável leveza do ser, desenhada pela Laerte Coutinho:
>¿e se eu & você, e se todas as pessoas forem vergonhosos impostores?
você comenta:
>¿e se toda essa maravilhosa paisagem for apenas um cenário de computação gráfica?
tua melhor amiga encosta delicadamente em teus lábios o dedo indicador.
> shhh.
tua melhor amiga não quer mais ouvir esse tipo de lamentação.
> shhh.
tua melhor amiga se levanta da areia.
estica os braços,
alonga todo o corpo,
faz um giro suave
e começa a dançar.
tua melhor amiga dança sem música.
sem esforço.
sem motivo.
tua melhor amiga dança uma coreografia engraçada, fazendo o corpo se lembrar de movimentos que nunca aprendeu.
agora uma dançante música se aproxima devagar,
meu pequeno herói,
bem devagar,
uma dançante música
preenchendo tua mente.
preenchendo a mente de tua melhor amiga, Serelepe.
a música.
a dança.
os pés na areia.
uma coreografia engraçada.
você, meu pequeno herói, e tua melhor amiga, Serelepe, vocês parecem se lembrar de uma música que nunca escutaram.
agora tua melhor amiga puxa você pela mão.
puxa você para a dança,
meu pequeno herói.
agora tua melhor amiga puxa teu rosto para mais perto.
puxa tua boca para mais perto.
boca na boca.
língua na língua.
corpo.
música.
dança.
mãos nas mãos.
mamilos.
púbis.
o sol em movimento.
gozo.
gostosa moleza.
espuma oceânica.
langor.
largados na areia.
você, meu pequeno herói, e tua melhor amiga, Serelepe.
gostosa moleza.
largados.
pelados.
dissolvidos na areia.
você, meu pequeno herói, e tua melhor amiga, Serelepe.
espuma oceânica.
sorrisos.
risos.



{¿minhas queridas & meus queridos, o que ë a realydade senäo uma complexa konstruçäo mental? ¿senäo um refinado processo intracraniano? sistema nervoso, sinapses, impulsos elëtricos, reaçöes quymicas…}

{tudo bem, chegamos a uma questäo problemätica… falar em realydade ë falar basicamente em redes de neurônios digerindo & codificando as informaçöes sensoriais, criando um modelo virtual do mundo… ¿ou näo ë?}

{mas o cërebro humano näo ë um dispositivo perfeito. a realydade, isso que chamamos de unyverso, ë uma simulaçäo dissonante, uma konstruçäo kontaminada por nossas memörias & emoçöes. minhas crianças, a verdade difycil de engolir ë que nös jamais saymos e jamais sairemos da maldita caverna do mito de Platäo.}

{¿entäo o grande problema ë o desejo, certo? ¡a vontade visceral! enquanto os animais vivem sua vidinha ignorante, totalmente imersos & satisfeitos na prisäo da ilusäo, nös somos forçados a desejar a liberdade. mas uma liberdade inalcançävel. agora eu te pergunto: ¿por que a evoluçäo cultivou em nös, prisioneiros, o desejo da liberdade, se a prisäo ë infinita e a liberdade ë impossyvel? esse desejo angustiante… ¿por quë? ¡¿feito uma luxüria sem corpo, apenas em nossa mente?!}

{em linguagem humana, respostas satisfatörias näo hä.}

{näo haverä jamais.}

{esqueçam por um momento os labirintos da razäo metödica. especulativa.}

{não se torturem com as sutilezas quänticas ou cosmolögicas dos impostores e das imposturas. ¿tudo são mäscaras mentais? ¿tudo ë simulacro neural?}

{repito: respostas satisfatörias näo hä.}

{näo haverä jamais.}

{o que hä, o que sempre houve, é o gozo.}

{o que hä, o que sempre houve, ë a dança sem motivo. a ventania feroz. o movimento festivo da endorfina e da dopamina. o que hä, o que sempre houve, ë a konjunçäo sagaz dos corpos. a tempestade dos hormönios. o colapso sensorial da serotonina e da ocitocina.}



> ¿amor, você viu meus olhos?
> estavam em teu rosto ontem à noite, quando eu fui embora.
> eu sei, mas hoje de manhã, quando eu acordei, não estavam mais.
> ai ai, meu raio de sol… vamos, eu te ajudo a procurar.
> ¿me empresta um olho?
> empresto… um olho, um ouvido, uma perna, o que você quiser.
> ¿ah, luz da minha vida, sem você o que seria de mim?
> ¿qual olho você prefere: a rosa ou a estrela?
> prefiro a estrela… a rosa queima demais.



uma brisa sagaz de cogumelo mágico.
o esplendor.
a cintilação voraz da vida.
transmissão de pensamento.
clarividência.
um teatro aquático de sombras sonâmbulas.
baleias & golfinhos.
golfinhos & tubarões.
tubarões & águas-vivas
do tamanho de um arranha-céu.
transmissão de pensamento.
clarividência.
¿quem consegue dizer com absoluta certeza em que ponto uma história começa?
¿quem consegue dizer com absoluta certeza em que ponto uma história termina?
uma brisa sagaz de cogumelo mágico preenche o mundo com um brilho feroz.
um brilho chapado.
> ¿amor, você viu meus pulmões?
> ¿meu sistema circulatório?



você está com sede.
vai até o filtro e enche de água um copo.
a água tem um gosto bom.
um gosto muito bom.
tua melhor amiga, Serelepe, ela está passando um café.
o aroma é maravilhoso.
tudo o que vem dos sentidos é maravilhoso.
mas por um segundo você hesita e se perde num devaneio racionalista.
> ¿o que são os aromas do mundo?
> ¿o que são os sabores do mundo?
> ¿delírio ou realidade?
> ¿simulação ou verdade?
descargas elétricas começam a congestionar teu raciocínio lógico.
o córtex pré-frontal começa a colapsar.
em tua mente, ó meu pequeno herói, a velha roda da angústia volta a girar…
mais rápido…
mais rápido…
> ¿putaquipariu, quem sou eu?
> ¿queeem sooouuu eeeuuu?
então do pântano fedorento da insatisfação racionalista três gigantescas criaturas de lama & gravetos & folhas & flores mortas caminham em direção à cidade.
são eles:
o argumento regressivo
o argumento circular
o argumento dogmático.
os três monstros do pântano fedorento cercam você, meu pequeno herói, e resmungam ameaçadoramente, em jogral:



{¡¿ficou doido, guerreiro?!}

{¡¿que recayda ë essa, maluko?!}

{¿ainda näo assimilou muito bem assimilada a ünica verdade que realmente merece crëdito?}

{todo o konhecimento teörico produzido & divulgado pela linguagem humana ë um konhecimento imperfeito, repleto de falhas.}

{o problema de todas as teorias fundadas na palavra, incluindo as mais refinadas, e de todos os teöricos que sö se expressam por palavras, incluindo os mais sofisticados, ë que vivem num abstrato mundo de faläcias chamado Trilema de Agripa.}

{mesmo no campo da lögica e da matemätica ë impossyvel provar definitivamente qualquer verdade.}

{trata-se de um trilema porque apresenta um impasse diante de trës alternativas, todas as trës incapazes de apresentar o fundamento verdadeiro de qualquer teoria:}

{primeira alternativa: o argumento regressivo, em que cada prova requer uma prova adicional, ad infinitum.}

{segunda alternativa: o argumento circular, ou petiçäo de princypio, em que a prova de alguma proposiçäo pressupöe a verdade dessa mesma proposiçäo.}

{terceira alternativa: o argumento dogmätico, äs vezes na forma do apelo ä autoridade, que se baseia em preceitos & preconceitos histöricamente aceitos que säo meramente afirmados e näo defendidos.}



a gravidade é pouca.
quase não há atmosfera.
você, meu pequeno herói, e tua melhor amiga, Serelepe, vocês estão caminhando sob o vácuo das constelações.
numa planície arenosa de um distante planeta.
você:
> ¿nós já estivemos aqui antes?
ela:
> nós já estivemos aqui antes. mil vezes. um milhão de vezes. talvez mais…
você:
> ¿e sempre foi assim, o mesmo gozo fabuloso?
ela:
> e sempre foi assim, o mesmo gozo fabuloso.
você:
> ¿como se fosse a primeira vez?
ela:
> como se fosse a primeira vez.
você, meu pequeno herói, e tua melhor amiga, Serelepe, vocês estão caminhando sob o vácuo das constelações.
numa planície arenosa de um distante planeta.
teu corpo, meu pequeno herói, carece de substância.
é uma estrutura diáfana, quase imaginária.
o corpo de tua melhor amiga também carece de substância.
também é uma estrutura diáfana, quase imaginária.
¿que música é essa?
¿que movimentos são esses?
você, meu pequeno herói, e tua melhor amiga, Serelepe, vocês parecem se lembrar de movimentos que nunca aprenderam.
de uma música que nunca escutaram.
a gravidade é pouca.
quase não há atmosfera.
> ¿como se fosse a primeira vez?
> como se fosse a primeira vez.
¿quem consegue dizer com absoluta certeza em que ponto uma história começa?
ninguém.
porque será sempre possível recuar um pouco, e mais um pouco, e mais um pouco…
sempre em busca do sentido completo do que realmente aconteceu.
sempre em busca do que convencionamos chamar de Verdade.
¿quem consegue dizer com absoluta certeza em que ponto uma história termina?
ninguém.
porque será sempre possível avançar um pouco, e mais um pouco, e mais um pouco…
sempre em busca do sentido completo do que realmente aconteceu.
sempre em busca do que convencionamos chamar de Verdade.



¿a dança e a música?
¿são duas intensidades?
¿o aroma do café recém-filtrado?
¿também são duas intensidades?
¿também são duas intensidades
o cheiro de terra molhada e a emoção vertiginosa
provocada pela manifestação do maior vulcão,
do maior tsunami?
duas intensidades:
¿quando aparecem e quando desaparecem?
¿a espiral do estrondo e a espiral do silêncio?
¿duas intensidades?
¿o terror e a alegria?



> aff…
> essa furiosa necessidade de questionar o mundo, sua lógica…
> shhh.
> apenas aceite a Presença de todas as coisas.
> cante.
> dance.
> me pega mais uma vez, com vontade.
> e agradeça.



se teu abismo interior
ou tua nuvem interior
ou qualquer coisa secreta {interior}
olhar muito tempo
para meu abismo exterior
ou minha nuvem exterior
ou qualquer coisa secreta {exterior}
meu abismo exterior
ou minha nuvem exterior
ou qualquer coisa secreta {exterior}
mandará afetuosos beijinhos
para teu abismo interior
ou tua nuvem interior
ou qualquer coisa secreta {interior}.
essa é a lei da retribuição,
também chamada de
lei da atração universal
entre dois corpos {ou mais}.
de abismo pra abismo.
de nuvem pra nuvem.
de qualquer coisa secreta
pra qualquer coisa secreta
em combustão espontânea.



boca na boca, língua na língua.
um relâmpago entre espelhos.
filamentos…
tentáculos…
dois polvos vorazes se atracando.
qual é a forma do universo:
¿plana ou esférica?
¿ou semelhante a uma sela de cavalo?
tanto faz.
você, minha pequena heroína, e teu melhor amigo, vocês estão caminhando sob o vácuo das constelações.
a gravidade é pouca.
quase não há atmosfera.
neste momento tanto faz qual é a forma do universo.
tanto faz se o universo é finito ou infinito.
¿o que havia antes do big bang?
aff…
¿tanto faz, não é mesmo?
tanto faz todas as questões complicadas dos cientistas.
boca na boca, língua na língua.
um relâmpago entre espelhos.
filamentos…
tentáculos…
dois polvos vorazes se atracando.
a conjunção supernatural dos corpos.
sob o vácuo amoroso das constelações, a telepatia, a fricção mental.
duas intensidades sagradas:
o terror {estrondo} e a alegria {silêncio}.
só isso é importante agora:
as devastações magnéticas do gozo.
saborear os sabores e os odores.
e dormir, dormir demais, dormir pesado, sem culpa nem desculpas, dormir o sono mais refrescante, apreciar as substâncias do prazer, a liberação de acetilcolina & melatonina, o movimento rápido dos olhos, acordar tarde, acordar revigorado…
só isso é importante agora:
você, minha pequena heroína, e teu melhor amigo, vocês trocam de corpo a cada minuto.
a cada minuto.
a cada minuto.
vocês trocam de corpo a cada minuto e jamais deixaram – jamais deixarão – de ser o mesmo corpo:
um quadrado.
um quadrado com um metro de cada lado.
um quadrado violeta.
num local fora do tempo e do espaço.









sobem os créditos finais
ao som de
O telefone tocou novamente
do Jorge Ben Jor


ou ao som de
Modern love
do David Bowie


ou ao som de
I wanna hold your hand
dos Beatles


ou ao som da canção dançante
que vocês, meus amores, mais gostam
de fazer rodopiar nos alto-falantes










Sofia Soft nasceu no dia 17 de maio de 1990, o mesmo dia em que a assembleia geral da Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da sua lista de doenças mentais. O local exato de seu nascimento ainda é controverso. Seu pai assegura que foi na província asteca de Agzceaziguls, sua mãe garante que foi na caribenha Ilha de Cacklogallinia, mas a própria Sofia afirma que foi na imprecisa Cidade dos Abençoados. Seu principal trabalho até agora é a colagem teatral Teoria do caos, ainda inédita. É apaixonada pelo Dicionário das tristezas obscuras, de John Koenig, e pelos filmes de Wes Anderson. Em 2018 lançou o livrim Sabixões & Sabixinhos: philosophus brasilis, em parceria com Teo Adorno, e em 2021 o breve romance Filhos do lixão, para jovens leitores, ilustrado por Sol Lunaris.


Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora